Os Actores do Vinho
Uma das coisas que mais me faz confusão no meio da indústria do vinho é indiferença com que a maior parte dos produtores assiste ao incorrecto consumo do produto que produzem: o vinho. Alguns ainda fazem o esforço de colocar no contra-rótulo a temperatura aconselhada de serviço e a necessidade de decantação. Mas penso que é mais um lavar de mãos como Pilatos do que um esforço verdadeiramente sério.
Tenho de partir de pressuposto de que os produtores de vinho querem que o seu produto seja consumido de forma correcta. Tenho que assumir isto como a minha primeira verdade senão este post não faz sentido.
De nascente a poente, temos os seguintes actores do vinho: os produtores, os distribuidores, os vendedores e os consumidores. A cadeia pode ser aqui ou ali “curto-circuitada” mas na maioria dos casos é esta a sequência formal. Deixemos de parte por agora os dois primeiros e concentremo-nos nos dois últimos. São estes que necessitam de ir para a escola e aprender tudo de novo.
Existem dois tipos de vendedores:
Transparentes – são por exemplo os supermercados. O vendedor é uma prateleira muda e nada interactiva. O esforço de evangelização aqui parece-me um desperdício de tempo e recursos.
Opacos – restaurantes e garrafeiras. Nestes é evidente a pessoa do outro lado do balcão. As garrafeiras são os vendedores mais informados, no entanto os clientes destas, na sua maioria, também são os mais informados e portanto não vale a pena perder tempo com estes. Ficam os restaurantes. Tirando meia-dúzia, o resto trata muito mal o vinho. Por vezes, perdem-se em “mariquices” e descuram o essencial. Bom acondicionamento, correcta temperatura e copos adequados. E se me permitem, preços honestos. É aqui neste grupo de vendedores que os produtores em conjunto com os distribuidores têm que actuar. Como o Ricardo escreveu, no post anterior, porque não: fornecer copos adequados aos restaurantes (não precisam ser de cristal, basta terem uma forma mais correcta). Podiam ter o logótipo da marca de vinhos patrocinadora, por exemplo. Alugar garrafeiras climatizadas. Ensinar qual a temperatura correcta de serviço de cada tipo de vinho. Sensibilizar para o correcto acondicionamento das garrafas de modo a acabar com a distribuição de garrafas ao alto em prateleiras por todo o restaurante. Podia-se começar por aqui.
Existem, por outro lado, dois tipos de consumidores:
Informados – passemos à frente destes.
Enganados – a grande maioria. Anos e anos de informação errada. Desinformação. Crenças. Mitos. Costumes. Contra este tipo de “inimigos” não é fácil lutar. Muitos destes consumidores pensam que pertencem à categoria de cima. Estão absolutamente convencidos que sabem, o que torna a luta ainda mais desesperante. Contra estes aconselho campanhas de informação conjuntas. Mais uma vez deve-se focar no essencial: acondicionamento, temperatura e copos.
Voltemos então aos dois primeiros actores. Podemos agrupá-los em dois tipos também:
Grandes Marcas – produtores e distribuidores geralmente “trabalham” juntos. Existe o conceito da “parceria”. O target são os consumidores informados.
Grandes Volumes – vender o máximo possível. O target são os consumidores enganados. Existem produtores que “jogam” nos dois lados do campo. Necessitam vender muito aos “enganados” para poderem suportar os requisitos dos “informados”. Pergunto-me se não estará o jogo viciado à partida? Será que afinal a minha primeira verdade é uma falácia? Será que afinal é do interesse de produtores e distribuidores manter o status quo? É certo e sabido que manter o povo ignorante é uma forma de manter o poder. Vários regimes políticos no passado e ainda no presente praticam esta filosofia. No caso do vinho que poder é esse que se quer conservar?
Assumindo-me eu como pertencendo ao grupo dos informados porque me queixo? Compro as garrafas que quero e posso, levo para casa e sirvo à temperatura correcta nos meus copos caros de marca. Encantado da vida. Só existe um pequeno pormenor que encrenca esta minha vida edílica. Como repasto muitas vezes fora de casa, nem sempre tenho “disponibilidade” para comer na meia-dúzia de restaurantes que tratam bem o vinho e, como tal, a maior parte das vezes é me servido uma malga de sopa quente e cara a que a maior parte dos restaurantes chama vinho tinto. Canso-me de pedir mangas refrigeradoras e com sorte a meio da refeição o vinho já está em boas condições de temperatura. Os copos não se conseguem remediar. As coisas complicam-se no fim da refeição se eu pedir um vinho do Porto de categoria superior. Mas isso é uma teimosia minha. Esqueço-me que o vinho do Porto de qualidade é para estrangeiros e não para portugueses. Por vezes, não sei onde é que tenho a minha cabeça!
7 comentário(s):
Caro Rui
Mais um excelente artigo, muitissimo realista. Pena é que só apareçam de 8 em 8 dias.
Parabens
JTMB
Caro JTMB,
tb eu tenho pena de só conseguir escrever de 8 em 8 dias.
Vou tentar reduzir o Tempo Médio por Artigo (TMA) para metade - 4 em 4 dias.
A ver vamos.
RC
E pelos vistos os franchisings de "nuestro hermanos" que têm o vinho como grande destaque, também sofrem do mesmo mal.
Provavelmente, será uma customização para o nosso mercado.
Algo do género: "Eles gostam de vinho bem quente, e que os empregados não percebam mais do que eles"
Só é pena não customizarem também vinhos com menos madeira...
Realmente, aqui na zona de Lisboa tem aparecido algumas casas de petiscos e vinhos com base em conceitos espanhóis: Taberna Ibérica e Vinotinto. As duas um pouco viradas para turistas e, a tentar alcançar um grupo de pessoas que prefere vinho a acompanhar petiscos do que a mais comum cervejinha. Concorrente das nossas típicas cervejarias.
Estes conceitos são de aplaudir. Nuno, como dizes e bem , a verdade é que o conceito espanhol também sofre da mesma enfermidade que os restaurantes portugueses: vinho tinto demasiado quente. Alguns até com erros graves de lista de vinhos (no Vinotinto na categoria Vinho do Porto aparece um licoroso espanhol).
É uma pena que não surjam mais casas destas mas com petiscos portugueses e vinho servido à temperatura correcta.
RC
Porque e' que nos agora e' que descobrimos todas as verdades 'a roda do vinho, e os que vieram antes de nos estavam completamente enganados? Sera que a mania do vinho chambreado nao era apenas uma moda, a que se seguiram outras? E' que nos andamos seculos a pensar que a Terra nao era redonda, e todos os dias se descobrem coisas novas que contradizem as que ja existiam... Sera' que ter-se um pouco a plena consciencia de que o gosto humano e' um sentimento volatil nao podera' trazer-nos uma percepcao do vinho menos monolitica, e por isso mais abrangente e enriquecedora? Ja dizia o outro que atras dos tempos vem tempos, e outros tempos hao-de vir*
*- quem foi que disse?
E se os que vieram antes de nós tivessem: vinhos arrumados em cima das chaminés; cozinhas exíguas a cozinhar para dezenas de pessoas; tectos de apenas 3 metros; paredes de tijolo; salas de jantar onde pessoas se amontoam enquanto outras esperam por um lugar.
Será que se tivessem tudo isto e mais algumas pérolas do género, também iriam chambrear o vinho, apenas para lançar a moda?
Já ocorreu que certos costumes que ocorriam em palácios, podem não fazer sentido em pequenos restaurante apinhados na cidade?
Podemos acreditar que o calor ajuda a passar das sensações para um plano metafisico. Mas também podemos não o fazer, tentando apenas beber um vinho à temperatura que nos sabe melhor e que curiosamente os produtores recomendam.
Caro anónimo,
relembro o que escreveu num comentário ainda à quatro posts atrás:
“Se se vai beber vintage novos, pelo menos que se decante o vinho com muita antecedencia e se acompanhe a sua evolucao ao longo de 2-3 dias. Num dos posts neste blog fala-se em provar - e dar nota - a Porto Vintage acabadinho de sair da garrafa! Assim nao meus senhores, trata-se de um vinho desenhado para sobriver decadas em garrafa...”
Pergunto se esta sua verdade não será também uma moda e não estará também abarcada pela sua citação: “... e outros tempos hão-de vir”?
Confesso que fiquei admirado por este seu comentário. Considerava-o no grupo dos “informados”. A questão da temperatura hoje em dia parece-me que já nem tem discussão (a ciência veio provar que os aromas manifestam-se de forma diferente a temperaturas diferentes. O chambrear o vinho foi outrora (mais) uma necessidade e não uma moda, já que os vinhos para prova vinham das caves francesas demasiado frios. Hoje em dia, isto raramente acontece.)
Mas cada um bebe o vinho como quiser e lhe der mais prazer. A mim é que não me sirvam vinho quente porque nesse caso prefiro beber água.
RC
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