Realidade vs. Percepção vs. Verdade
Cada vez que realmente me interesso por um assunto tenho por hábito procurar o máximo de informação possível. Geralmente compro livros. No caso do vinho não foi diferente. Iniciado o interesse, corri para as livrarias e comprei: guias de compras, “Manual Enciclopédico do Vinho” (Stuart Walton), “Manual de Viticultura” (Alain Reynier), “O Vinho – Sua preparação e conservação” (Octávio Pato), “O Essencial sobre a Prova” (Michael Shuster). Assim, que me lembre...
Numa altura em que me tenho dedicado ao conhecimento sobre o que se faz lá fora, nomeadamente em França, a minha curiosidade levou-me a revisitar o “Manual Enciclopédico do Vinho” (Stuart Walton). As regiões, as castas, o sistema de classificação dos vinhos de Bordéus, os nomes consagrados. Aproveitei, também, para dar uma vista de olhos nas 5/6 páginas dedicadas a Portugal. Desactualizado, muito desactualizado. É verdade que o livro já leva 10 anos. As regiões, as castas nacionais e os principais nomes do vinho do Porto mantêm-se sem grandes alterações, no entanto, passados estes 10 anos assistiu-se a uma enorme profusão da utilização de castas estrangeiras e um aumento/alteração dos produtores/vinhos de referência em Portugal.
E foi ao ler as páginas relativas a Portugal que me surgiu a seguinte pergunta: será que continuam válidas as referências efectuadas neste livro para os outros países produtores? Bem sei que na França (o país que mais me interessava no livro) a resistência à mudança é grande e a tentativa da manutenção dos status quo é passatempo “regional”, de qualquer modo, quem vai lendo as revistas e os sites da especialidade sabe que também nestes 10 anos surgiram novidades e inexoravelmente as resistências foram caindo.
A realidade, tal como a prova, só é válida no momento da mesma. O tempo encarrega-se de desactualizar a nossa percepção da realidade. Um livro desactualizado pode facilmente tornar-nos obsoletos. Pior que um livro desactualizado: um livro intrinsecamente errado. Uma falácia.
Dei por mim numa livraria da nossa capital com o “Hugh Johnson’s Pocket Wine Book 2006” na mão. Pensei: 'deixa-me lá ver o que é que está a dar lá fora e o que é um crítico internacional de renome considera que são as referências em Portugal'. E então, comprei. Li e voltei a ler a secção dedicada a Portugal. Mesmo sendo um livro recente (2006 Revised & Updated) não encontrei certas referências vinícolas portuguesas de topo (por exemplo, Pintas, Poeira, Vinha.Paz, Quinta da Dôna, Tapada de Coelheiros) e deparei-me com outras que, na minha opinião, não têm razão de ser. Às tantas, o autor apresenta-nos uma selecção de vinhos para comprar em 2006:
Tinto
Douro: Batuta, Charme, Vale Meão, Vinha da Ponte, Vinha Maria Teresa e Chryseia;
Alentejo: vinhos de Trincadeira e/ou Syrah;
Ribatejo: “value for money”, especialmente Tagus Creek;
Dão: Vinhos de Quinta (Carvalhas, Roques, Pellada e Saes). Duque de Viseu (“value for money”);
Porto (vintage)
Fonseca 63, Taylor 63, Fonseca 66, Graham 70, Taylor 70, Smith Woodhouse 77, Graham 80, Taylor 92, Quinta do Noval 94, Fonseca 94.
Concluí rapidamente que este guia foi feito para consumidores não portugueses e com grande poder de compra. Ou seja, não foi feito para mim. Percebi que um guia de compras internacional nunca é feito para os consumidores do país de origem dos vinhos avaliados. As reservas que eu coloco relativas à secção Portuguesa do guia não serão as mesmas que um consumidor informado Espanhol coloca relativamente à secção Espanhola? E um Italiano ou um Francês? Posso eu confiar nas referências/escolhas do autor para os vinhos desses países? Será que a maioria dos consumidores/leitores destes guias internacionais tem percepção que a realidade que lhes é dada a conhecer difere de guia para guia e que será sempre diferente da percepção de realidade vinícola do consumidor do país de origem?
Será que podia ser diferente? Se calhar não, mas fiquei convencido que os piores livros de todos são aqueles que são revistos e actualizados. Incutem no leitor uma sensação reconfortante de que é verdade o que este acaba de ler. E a verdade é muito diferente da realidade.
7 comentário(s):
Ou é do calor ou da falta de assuntos desta época mas o facto e´que tenho alguma dificuldade em acompanhar os seus argumentos desta vez
Vejamos: Espanta-se que um livro com 10 anos (de publicação, mais alguns de certeza de redacção!) esteja mais desactualizado nas referências a Portugal do que à França. Para além do peso diferente de cada país, convém lembrar que os vinhos (de mesa) portugueses de qualidade só começaram a ser uma realidade nos últimos 15 anos, com maior destaque para os 10 últimos precisamente. Por muitas novidades que tenham surgido em França recentemente, todos os grandes Chateaux têm pelo menos já um século de história atrás. Como dizia o outro, «o que custa são os primeiros 200 anos». Não há comparação portanto.
Por outro lado também não percebo o seu espanto dos guias internacionais não serem escritos para os consumidores portugueses. Deveriam ser? Salvo melhor opinião, para isso o amigo tem precisamente os guias de vinhos portugueses (de vários autores, pode escolher o que mais gosta). Quando os autores internacionais falam dos vinhos portugueses em publicações dos seus países têm sempre presente a oferta que existe desses vinhos no mercado onde estão os seus leitores. Um vinho português com uma produção de 5.000 garrafas que eu possa considerar muito bom se não está à vemda no RU, não interessa nada ao consumidor desse país. Por isso é ignorado nesses guias como é evidente e como deve ser.
Isto não é evidente?
Apreciado Rui,
lamento tener que escribir en español. Puedo leer bien el portugués y hablarlo un poco, pero por desgracia todavía no me atrevo con el escrito. Con mis amigos portugueses, usamos el sistema de qu eellos hablan en portugués, yo en español (siempre lentamente) y nos entendemos a la perfección. Espero que no sea un problema.
Leo y sigo vuestro blog desde hace semanas porque estoy muy interesado en los vinos portugueses. Estuve en junio en Evora, probé algunas cosas y, de pronto, me dí cuenta de que Portugal tiene mucho más que ofrecer que los portos (que no es poco, conste!). Estoy convencido de que la próxima gran zona emergente en vinos blancos y tintos será Portugal (como lo han sido algunas zonas de España desde hace 10 años). Vuestro blog me ayuda mucho a irme situando y este comentario tuyo sobre las guías revisadas es muy acertado.
Y yo, que soy extranjero, pienso como tú: tampoco están hechas para mí, que tengo un gran interés por los vinos portugueses pero un bolsillo limitado.
Espero que, cuando podáis el grupo, visitéis también mi blog, sobre todo dedicado a los vinos españoles, con incursiones en otras zonas, y que podamos disfrutar de un buen intercambio de informaciones.
Un saludo cordial,
Joan
Caro jgr,
sem querer fazer de advogado de defesa de ninguém, parece-me que talvez tenha passado ao lado da questão suscitada pelo Rui.
A meu ver, a questão não é se um determinado guia internacional é válido para Portugal em concreto, mas sim se eu posso confiar num guia internacional para descrever de forma razoavelmente fiável aquilo que de melhor ou mais interessante existe fora do meu país. Parece-me que o Rui utiliza o caso de Portugal como uma forma de perguntar se um enófilo espanhol ou francês vê o seu próprio país vinícola bem representado nesse guia.
Eu vou para Itália. Não percebo uma palavra de italiano. Os guias italianos de vinhos não me servem, compro um internacional em inglês. Posso eu confiar que esse guia me transmita uma realidade vinícola correcta de Itália? Será que com esse guia não fico com a percepção de que os únicos vinhos que valem a pena adquirir são vinhos caros? Ou de certa região?
E esta parece-me uma questão de grande importância na formação da percepção que uns têm de outros.
Tendo eu a noção de que os guias internacionais não servem para os vinhos do meu país, será que eles servem para outros países? E talvez pior, será que o consumidor estrangeiro fica com uma percepção errada daquilo que é a realidade vinícola do meu país? Provavelmente...
PS: Só para uma nota de carácter geral. No último mês e meio os outros comparsas de blog parecem algo eclipsados. Como alguém que gosta mais de ler do que participar, espero que a situação seja passageira. Um abraço.
Caro JGR,
Se calhar tens razão e é do calor (tem realmente estado insuportável) e por isso eu não me expliquei bem. Vou tomar emprestado o comentário do Tanino para expressar a minha opinião porque tenho que lhe dar os parabéns: resumiu de forma extraordinária as minhas ideias e ainda consegui clarificar o que eu pretendi dizer.
Eu não me espantei com a desactualização do livro. O que eu disse foi que se para Portugal está desactualizado até que ponto não estará também para a França? Depois passei à frente desse livro e tentei explicar que mesmo que nós utilizemos um guia internacional actualizado nunca conseguiremos saber tanto sobre outro país vinícola como um habitante apreciador desse país. Mais, podemos mesmo ser conduzidos para uma realidade muito diferente ou deturpada daquela que um habitante desse país tem.
Um estrangeiro que pegue no livro e venha a Portugal, depara-se com o quadro das compras seleccionadas pelo autor e se o seguir irá perder muitos outros vinhos que nós portugueses considerámos de topo e a preços mais em conta, e no caso dos vinhos do Porto muito provavelmente terá que vender o bilhete de regresso de avião para pagar algumas daquelas garrafas. E se eu for a Espanha ou França, não conhecendo a realidade desse pais se seguir o guia pode-me acontecer o mesmo. Isto é tão subjectivo, que se eu pegar num livro das Jancis Robinson, por exemplo, as sugestões de compra para 2006 são provavelmente muito diferentes. Ou seja, quis de algum modo alertar para aleatoriadade ou importância da escolha do guia internacional. Foram mais uns desabafos e filosofia barata do que outra coisa.:)
Um abraço,
RC
P.S. O Joan Pallares (seja bem vindo) se calhar até se safa com os guias portugueses porque consegue perceber bem o português, mas por exemplo eu que fui à Bélgica à pouco tempo e comprei a Le Revue du Vin de France, cuja edição é dedicada à colheita de 2005, vejo-me à rasca para conseguir perceber metade.
Muchas gracias por la bienvenida, Rui: es fantástico tenjer interlocutores enófiles en Portugal. Seguiremos atentos a las cosas de ambos lados de la frontera hispana.
UN saludo cordial,
Joan
Agradeço os esclarecimentos do Tanino e do RC e acho que percebi a vossa posição.
Mas volto a insistir na ideia que os guias são concebidos para serem lidos em determinados mercados e só nos dão informação relevante relativamente à disponibilidade dos vinhos nesses mercados. É claro que se estamos a falar de um guia de vinhos internacional focando a produção de vários países, o retrato de cada um destes é sempre superficial e é legítimo esperar encontrar mais lacunas sobre os países menos conhecidos ou menos relevantes nos mercados internacionais.
Quando vou a Itália (é um bom exemplo: estive em Itália estas férias) compro um guia de vinhos italiano. Para além de conseguir entender minimamemte a língua (nisso nós somos imbatíveis!), alguns como o Gambero Rosso têm uma versão em inglês.
Indo ao caso português. Se um turista vem cá passar uns dias de férias para banhos e fazer umas passeatas, não virá mal ao mundo que ele leia a informação básica sobre os vinhos portugueses exposta nos guias internacionais, com a probabilidade, se o desejar, de voltar a encontrar esses vinhos numa wine shop quando regressar a casa. Se o seu interesse for maior, se quiser «mergulhar» no mundo dos vinhos portugueses, só um guia português ou alguém que lhe replique os conselhos é que poderá ajudá-lo.
Espero ter tornada clara agora a minha posição.
Grato pela vossa disponibilidade em permitir este diálogo na «vossa casa».
JGR
Daí eu ter concluído que os piores livros são os “revistos e actualizados”. Porque se é verdade foram revistos e actualizados, na realidade estão sempre muito incompletos.
RC
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